Eu não me arrependo de você por Camila Pereira M. | Pacote de Açúcar #1


nota: esta participação vem acompanhada por música

Deveríamos ter ensaiado um fim. A dose de dramaticidade nunca vem em doses homeopáticas. Havia um cenário, mas não havia diálogo. Não havia palavra suficiente capaz de descrever o filme que nós dois criamos.

Enquanto definiam a nossa nova dinâmica, me distraí com um saquinho de açúcar que havia numa mesinha ao lado da cadeira que eu estava sentada enquanto esperava a nossa sentença de fim. Foi o único momento que eu olhei para ele - sentado na cadeira em frente, do lado oposto da sala. Ele olhava para as mãos, inquietas sobre as pernas. Não me dirigiu os olhos nem por um mínimo relance.

Havia naquele saquinho de açúcar a imagem de um azulejo português. Fui transportada para o dia que escolhemos os azulejos que iriam compor a nossa cozinha. Brincamos com a herança lusitana perdida no passado dos nossos avós. Cada pequeno detalhe do nosso lar foi construído a partir das nossas escolhas afetivas e naquele instante, tudo o que pensamos em par, estava sendo resumido a uma partilha de bens.

A divisão dos móveis, o valor do apartamento, do carro, os objetos de decoração, cada quadro pregado na parede que só existiam por um conjunto harmônico de todas as lembranças que costumávamos comprar durantes as nossas viagens. Cada peça, que antes orquestrava a música perfeita do que chamávamos de casa, iria compor novos ambientes onde não existiria mais a nossa vida em comum a partir daquele instante, daquele crucial instante, que eu segurava a caneta e assinava aquela papelada, deixando a todo tipo de burocracia a nossa separação.

Mas como livrar dos trâmites judiciais, das leis dos homens, toda a necessidade de armazenar no mais profundo da memória, nas gavetas da lembrança, um amor que se fez divino e se perdeu, mas que ainda pulsava e - no meu choro contido - se sabia tão vivo?

O meu amor não estava para as constituições e nomenclaturas formais. Eu queria gritar que ainda havia ar, que havia chance de reestabelecer aquela história, mas que por definições tolas me colocava a fala sobre um discurso terceiro, vestindo terno e gravata, e me impedia de sustentar aquele fio de esperança que queimava no meu peito.

Tive um sobrenome desfeito e toda a decisão da apropriação daquele nome desmoronando e transformando a minha história de amor em ruína. Já não sabemos mais um do outro. Mas confesso, com certa amargura, que não há um dia sequer que eu não pense nele. Talvez ele já não pense em mim, mas acredito que não há nenhuma nova história de amor capaz de desfazer o que fomos e o que, a partir da nossa dor, nos tornamos hoje. Tenho nutrido uma fé amiga nestes dias em que me ocupo com a organização do meu novo apartamento, com a nova movimentação da minha vida; uma fé quase infantil de poder dizer em algum tempo indefinido do calendário, já sem amargor, sem aquela dor de pesar:

- Eu não me arrependo de você.


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Camila Pereira M.: é de 1985 e vive na cidade de Niterói – RJ/ Brasil. Professora por formação e escolha; especializou-se em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo por acreditar que, mesmo recorrendo aos clássicos, é neste tempo de agora que habita a descoberta. Gosta de livros, coleciona cadernos e escreve uns contos vez ou outra.

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